22/06/16
Por Marco Túlio de Sousa
Doutorando em Comunicação (Unisinos)
Professor Dr. Antônio Fausto Neto na Unisinos. |
Hoje o “Mídia, Religião e Sociedade” inaugura uma nova fase com a seção Entrevistas, que conta com material exclusivo, obtido a partir do contato com pesquisadores da área. Nessa primeira edição conversamos com o professor Dr. Antônio Fausto Neto, docente do programa de pós-graduação em Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). A entrevista transcorreu em duas oportunidades, quando nos reunimos e debatemos a respeito das pesquisas realizadas pelo professor sobre as complexas relações que envolvem os campos religioso e midiático. A extensão do material nos levou a dividir o texto em duas partes.
Neste primeiro momento, Fausto fala sobre como a adaptação às lógicas midiáticas faz com que produções católicas e evangélicas se aproximem do ponto de vista de suas performances, levando-o ao conceito de “religião do contato”. Tal discussão passa por questões discursivas que envolvem, inclusive, a materialidade do corpo. O pesquisador também constrói hipóteses sobre as razões que levaram as instituições neopentecostais se destacarem pela sua presença midiática.
Mídia, Religião e Sociedade (MRS): Professor, na sua trajetória acadêmica o senhor estudou diversos temas que envolvem a relação dos media com outros campos sociais e questões (a política, a literatura, a migração, o ofício do jornalismo etc), como a religião surgiu como interesse de pesquisa?
Fausto:
Eu
não sou um especialista em religião, nem tampouco um especialista em mídia e
religião, esse viés vem de uma preocupação minha e do nosso programa (de
pós-graduação da Unisinos) definida por uma pergunta: o que vem a ser chamado
de campo midiático e que relações ele estabelece com outros campos sociais? Particularmente,
que tipo de atividade emanava do campo midiático para o funcionamento de
práticas de outros campos? Isso me preocupava bastante. Foi o que me levou a
estudar comunicação e política (as campanhas eleitorais), a AIDS, a
midiatização da ciência e também essa questão que envolve a mídia e religião,
que era algo que já despontava naquele primeiro momento como uma problemática
que se situava na “sociedade dos meios”: havia certa centralidade na medida que
tanto o campo religioso quanto o campo midiático através de movimentos
diferentes implementavam o funcionamento da religião no interior desse
território chamado midiático. Isso é um fato importante. A religião sempre
esteve presente por meio de colunas, sessões, registros etc, no campo
midiático, mas há um momento, que é muito significativo, em que o tema da
religião capilariza-se na sociedade por meio de fenômenos muito particulares
como, por exemplo, a complexificação da “igreja eletrônica”, que foi estudada
lá atrás pelo Hugo Assmann (ASSMANN, 1986) e outros autores (HARTMANN, 2000), a
emergência dos padres cantores e da “onda evangélica” etc. Enfim, tal como
estudei a relação do campo midiático com outros campos, também veio o interesse
por entender como isso se dá com a religião.
MRS: Então podemos dizer que os estudos em mídia e religião estão integrados a um projeto maior que consiste no entendimento da relação do campo midiático com outros campos sociais...
Fausto:
Sobretudo
como dimensões e operações referência do campo midiático funcionam como
condições de produção para a estruturação de outros campos do ponto de vista de
estratégias simbólicas. E vice versa. Ou seja, as igrejas fazem funcionar suas
atividades declaradamente a partir de recursos muito fortes que ela toma da
mídia.
MRS: De 2003 a 2006 o senhor coordenou o projeto “Processos Midiáticos e Construção de Novas Religiosidades: as dimensões discursivas” que propunha analisar estratégias discursivas de produções televisivas católicas e neopentecostais e também a “produção midiática” de um acontecimento cuja origem é religiosa (o Círio de Nazaré). De que modo cada um deles articula formas de presença da religião na mídia que dizem de uma nova configuração do religioso no cenário atual?
Fausto:
Vamos
começar pelo primeiro ponto [produções televisivas católicas e neopentecostais].
Evidentemente há um aspecto forte aí que é essa transição da sociedade dos
meios para a sociedade em vias de midiatização que faz com que a atividade
midiática se complexifique de modo a ser produzida também pelo campo religioso,
tanto nos seus processos gerenciais e quanto de estratégias discursivas. Ou
seja, o campo religioso constitui as suas redes. Para fazer isso passa por uma
série de negociações (políticas, empresariais etc). Quando as igrejas vão para as mídias elas se
modelizam em torno de linguagens, gramáticas e protocolos midiáticos, mas
levando consigo suas respectivas pedagogias de contato com a sociedade. Talvez por
isso hoje se possa dizer que há pouquíssimas diferenças entre programas das
rádios e TVs católicas e evangélicas de segunda geração [pentecostais] porque a
medida que a religião passou a ser um fato público ela passa a se organizar do
ponto de vista estratégico em sintonia com um mercado discursivo de massa que
está a espera de um chamado, um convite, uma adesão que só os dispositivos
religiosos podem fazer hoje através desses mecanismos (midiáticos). Isso
acontece quando a Igreja Universal vai lá para os grotões do Brasil, quando a
Igreja Católica cria pastorais voltadas para jovens via música. Viver a religião hoje é um fato público e a
maneira de materializar essa experiência em termos públicos se faz pela
mediação tecno-simbólica das mídias. Isso tem um impacto muito grande
quando a gente pesquisa o cotidiano da sociedade e vê isso faz parte do mundo
das pessoas. Elas veem, escutam e transferem para suas casas a realização de
rituais que não mais se restringem ao ambiente do templo, mas que são
vivenciados entre famílias, grupos de oração, de discussão, de vizinhos, que
ali estendem, como dizia o Max Weber, os braços das velhas igrejas para o
mundo da vida. Isso é um fenômeno que não nasceu agora, é um fenômeno que tem
um transcurso longo, mas que se agudiza e se complexifica hoje com essa
transformação da organização da ambiência social em uma ambiência de
midiatização de grande porte. As igrejas souberam ocupar um espaço no contexto
midiático, mas para tanto tiveram que se adaptar, se redesenhar e revestir suas
práticas e aspectos do seu discurso, da sua postura com aquilo que é próprio do
campo midiático.
MRS:
Em
artigo publicado na revista Em Questão (FAUSTO NETO, 2003), que é um dos
resultados dessa pesquisa, o senhor utiliza o termo “religião do contato” para
caracterizar uma religiosidade que emergia dos programas televisivos tanto católicos
quanto neopentecostais por meio de recomendações ao público de que se tomasse
alguma atitude enquanto assistia o programa que implicava tocar em alguma parte
do corpo). Essa dimensão do toque pode ser vista como uma forma de compensação
da não simultaneidade espacial característica deste tipo de emissão? Por quê?
Fausto:
Aí
é uma hipótese que eu levanto de que todas as religiões se exercitam
discursivamente pela dimensão do corpo. Ainda que em níveis diferentes o corpo
é fundamental: o corpo da fé, da súplica, da expiação, do castigo, da adoração,
da celebração. Na esfera do templo o corpo é um dispositivo central para que o
ritual possa se consumir. A passagem da religião da esfera do templo para a
esfera da mídia implica em potencializar ou exarcerbar certas regras da sua
discursividade sem as quais tal passagem seria muito problemática e até mesmo
descaracterizadora das pretensões destas instituições. Cada uma potencializa o
corpo em uma direção. Quando eu digo que emerge aí “uma religião do contato”
isso tem a ver com uma dimensão central da obra do Peirce, que é em relação ao
índice, a religião não é só um fato representacional, simbólico. Você encontra
principalmente no protestantismo de segunda geração (pentecostal) um
investimento no corpo que parece mais intencional. O corpo age no sentido de
evidenciar a performance dos atores sociais no quadro e no contexto dos
rituais. Então, a religião do contato começa a se construir lá no templo, mas é
nesta esfera [midiática] da sua visibilidade, da sua demonstração, que isso se
toma uma dimensão muito mais desafiadora porque se expõe para a esfera pública,
digamos assim, formas através das quais se imagina a celebração do ato
religioso hoje. Essas formas passam pelo contato, pelo corpo, pela
interpelação... passam por programas de escuta, Fala Que Eu Te Escuto, por
exemplo e passam por prédicas e falas
que estão na fronteira do colóquio, da intimidade. Isso significa dizer:
certa ritualização que emerge das mídias, dos gêneros midiáticos, da intimidade
da televisão, ou seja, da “neotelevisão” (ECO, 1984), vem em auxílio dos
desafios que representa hoje midiatizar religião. É a exacerbação dos rituais
pela mediação do corpo e um corpo que toma como empréstimo operações dos gêneros
midiáticos. Talvez neste modelo de midiatização da religião estejamos próximos
a formatos e lógicas adotados por programas como o Big Brother Brasil, guardadas as devidas proporções e suas
economias discursivas. Mas essa é só uma hipótese.
MRS: Esse apelo ao corpo e à emoção valorizado pela TV ajuda a explicar o porquê das igrejas Católica e Protestantes tradicionais terem tido maior dificuldade do que as igrejas Pentecostais para se adaptarem ao ambiente televisivo?
Fausto:
sim, elas (igreja católica e igrejas protestantes tradicionais) estão ligadas a
uma tradição mais racional e abstrata. Têm dois fatos que a gente repete e
muitas vezes não reflete. O que representa a realização da missa nos idiomas
nacionais [antes era em latim]? O que representa a mudança no rito no qual o
sacerdote deixa de celebrar de costas para as pessoas e passa a fazê-lo de
frente? Era uma relação com o altar na qual ele fazia duas ou três concessões
quando ele se virava para saldar os fiéis. Nesse contexto ele era de fato um
intermediário entre a instância do sagrado e a instância do povo, mas cuja
relação fundamental de tensão e de vínculo se dava com o altar já que ele
ficava de costas para as pessoas. A “virada” tem muitas consequências porque
ele se expõe a um contato em que passa a se colocar como um mediador mais
compartilhado com a vida da comunidade, mas que leva aquilo que a comunidade o
confia à ordem do divino pelas especificidades do seu ministério. Essa “virada”
significa o reconhecimento do corpo e da sua dimensão dramaturgizante, que é
uma dimensão fundamental para produzir efeitos de sentido no âmbito
discursivo-religioso. Aqui, creio que Goffman (2011) pode ajudar a explicar
essa dinâmica. É impossível a gente repetir o modelo romano, o modelo europeu de
celebrar as nossas crenças, as nossas inquietações na direção do sagrado sem
que isso se faça sem uma explicitação dessa energia que o corpo reúne. Uma
evidência de que isso parece ser verdade é que os grandes ritos religiosos
passam cada vez mais por essa experiência do contato. É por isso que eu digo que o contrato foi substituído pelo contato.
Esse contrato religioso no sentido de ir à missa, ao culto, observar certas
prescrições do mundo do discurso religioso dá lugar a essa nova prática, a essa
nova vinculação que se faz pelo contato que estamos tentando descrever.
MRS: O senhor usou o conceito de “religião do contato” (FAUSTO NETO, 2003) para caracterizar o fenômeno no âmbito televisivo, em que medida ele ajuda a entender a presença das religiões na internet? Ou teríamos que pensar em outras construções teóricas?
Fausto:
Eu
confesso a você que eu abandonei um pouco o meu processo observacional de um
modo mais sistemático e tenho acompanhado isso mais pelos trabalhos de colegas
seus (no programa de pós-graduação em Comunicação da Unisinos), mas me chama
muito a atenção esse descolamento da esfera da televisão para a internet com a
simulação e radicalização dos ofícios religiosos que seguem os enquadres
ritualísticos engendrados na internet, a exemplo dos santuários digitais e uma
série de protocolos que impulsionam a atividade religiosa. Penso que é uma
tendência (esse deslocamento) uma vez que todas as práticas são midiatizadas
seria inevitável que o mundo da internet não fosse também tensionado pelas
práticas religiosas.*
* Para ler a segunda parte da entrevista clique <<<aqui>>>.
Textos citados na entrevista
ASSMANN, Hugo. A
Igreja Eletrônica e seu impacto na América Latina. Petrópolis (RJ): Vozes,
1986.
ECO, Umberto. Viagem
na Irrealidade Cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
FAUSTO NETO, Antônio. Religião do contato:
estratégias dos novos "templos midiáticos". In: Emquestão
–Revista da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS. Porto
Alegre, RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vol. 2, n 1(jan./jun
2003), p. 163-182.
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 18º
ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
HARTMANN,
Attilio Ignacio. Religiosidade e mídia eletrônica: a mediação
sócio-cultural-religiosa e a produção de sentido na recepção de tv. São Paulo,
2000. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – ECA-USP.
Sobre o autor
Sobre o autor
Antônio Fausto Neto é pós-doutor em Comunicação pela UFRJ, doutor em Comunicação pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS) da França, mestre em Comunicação pela Universidade Nacional de Brasília (UNB) e graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente é professor titular do programa de pós-graduação em Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Interessa-se por temas relacionados a Jornalismo, Discurso, Noticiabilidade, Estratégias Midiáticas e Midiatização, tendo também já estudado objetos que envolvem religião, discurso e mídia, especialmente no âmbito televisivo.
Conheça textos do professor já divulgados pelo Mídia, Religião e Sociedade clicando <<<aqui>>>.
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